Motivo

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Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecília Meireles

PORQUE A VIDA SEM SONHO É O PIOR PESADELO

Prepara-te. A qualquer instante, quando menos esperares, alguém fará pouco de teus sonhos. Virá de um canto insuspeitado, do seio de tua família, do campo de teus amigos, da multidão de teus estranhos e fará coro com um bando descrente, rasteiro, numeroso e empenhado em manter a rasa normalidade das coisas.

Juntos, rirão de tuas ambições e teus desejos e intenções essenciais. Tentarão diligentes, aplicarão forças com empenho em seu intento brutal. Como quem laça nas ruas o pescoço de cachorros sem dono e os lança em jaulas frias de ferro e sangue, caçarão teus sonhos mais fundos até arrancá-los de tua alma.

Revela querer o mundo, vai, e dirão que a ti mal cabe o teu quintal. Confessa a tua busca por enxergar além e apontarão a tua cegueira. Defende a luz que te orienta e voltarão a ti um olhar de sombras. Experimenta celebrar a fantasia e julgarão tua loucura como a peste.

Sob tuas narinas ardendo com a fuligem de tanto sentimento baixo, arrastarão casa afora teus velhos propósitos de leveza que o tempo e os deveres de cada dia tornarão pesados como antigas cômodas e penteadeiras e aparadores. Olha ao redor. Tem gente levando teus sonhos embora.

Assim, escarnecendo do que tu queres, tentarão fazer-te desistir, fraquejar, esquecer que tens o tamanho de tua coragem, a gravidade de teus valores e a riqueza de teus sonhos roubados aqui e ali. Aos poucos, sorrateiros como os ratos e as cobras, levam-te o que tens de mais sublime. E tu nem percebes.

Quando te deres conta, serás só uma criatura miserável extorquida de tuas possibilidades, largada à rua da amargura, envolta nos trapos da rotina, racionando tua comida e teus anseios, mendigando atenção falsa.

Antes, defende teus sonhos. Os fáceis e os impossíveis. São eles que nos salvam das vidas cretinas e certezas burras, dos gênios arrogantes, da perfeição idiota, da paralisia barulhenta. É o sonho que nos mantém em movimento. Sonhando, cumprimos nossa vocação essencial de pessoas simples, seres perplexos, criaturas operosas olhando a vida com espanto e humildade.

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas

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Carta a um Refém – Lettre à un Otage

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Quando em Dezembro de 1940 atravessei Portugal para ir aos Estados Unidos, Lisboa surgiu-me como uma espécie de paraíso claro e triste. Falava-se então muito de invasão iminente e Portugal agarrava-se à ilusão da sua felicidade. Lisboa, que organizara a mais bela exposição do mundo, sorria com um sorriso um tanto pálido, como o das mães que não têm quaisquer notícias do filho ausente na guerra e se esforçam por salvá-lo a poder ter confiança: «O meu filho continua vivo porque eu sorrio…» «Vejam como estou feliz», dizia assim Lisboa: «Como estou feliz, tranquila e bem iluminada…» O continente inteiro pesava contra Portugal como se fosse uma montanha selvagem, carregada de tribos predatórias; Lisboa em festa desafiava a Europa: «Haverá alguém capaz de me tomar por alvo se nem tento esconder-me? Se sou tão vulnerável!…»

À noite as cidades da minha terra eram cor de cinza. Nelas eu perdera o hábito de toda a claridade e esta capital radiosa causava-me um incómodo vago. Se é escura a vizinhança, os diamantes da montra muito iluminada atraem os que ali vagueiam. Sentimo-los circular. Contra Lisboa sentia eu pesar a noite da Europa habitada por grupos errantes de bombardeiros, como se ao longe tivessem farejado aquele tesouro. Mas Portugal ignorava o apetite do monstro. Recusava-se a acreditar nos maus sinais.

Portugal falava de arte com uma confiança desesperada. Haveria quem ousasse esmagá-lo no seu culto da arte? Pusera à mostra todas as suas maravilhas. Haveria quem ousasse esmagá-lo nas suas maravilhas? Mostrava os seus grandes homens. À falta de exército e canhões, contra o ferro do invasor erguera todas as suas sentinelas de pedra: os poetas, os exploradores, os conquistadores. À falta de exército e canhões, todo o passado de Portugal barrava a estrada. Haveria quem ousasse esmagá-lo na sua herança de um passado grandioso? Noite após noite eu errava com melancolia através dos êxitos dessa exposição de extremo bom gosto onde tudo roçava a perfeição, até a música, tão discreta e escolhida com tanto tacto, como um murmúrio de fonte.

Haveria quem destruísse no mundo esse maravilhoso gosto pela justa medida? Mas por baixo do sorriso, eu achava Lisboa mais triste que as minhas cidades extintas. Conheci, vós também, por certo, dessas famílias um pouco excêntricas que mantêm à mesa o lugar dum morto. Negavam o irreparável. Não cuido, porém que tal desafio consolasse. Dos mortos devemos fazer mortos. Então eles, no seu papel de mortos, recuperam outra forma de presença. Mas aquelas famílias suspendiam o seu regresso. Faziam deles ausentes eternos, convivas em atraso para toda a eternidade. Trocavam o luto por uma espera sem conteúdo. E essas casas pereciam-me mergulhadas num mal-estar sem perdão e tão abafante como o desgosto. Pelo piloto Guillaumet consenti pôr luto, Deus meu!… O último amigo que perdi, morto em serviço postal aéreo. Guillaumet nunca mais mudará. Se não voltar a estar presente, também não há de estar ausente. Sacrifiquei-lhe o lugar à mesa, essa armadilha inútil, e fiz dele um verdadeiro amigo morto. Mas Portugal tentava acreditar na felicidade mantendo-lhe o seu lugar, conservando os seus candeeiros e a sua música. Em Lisboa representava-se a felicidade para que Deus acreditasse nela. Em parte, o clima de tristeza devia-o Lisboa à presença de certos refugiados. Não me refiro a proscritos em busca de asilo. Não falo de emigrantes à procura de uma terra a fecundar com o seu trabalho. Falo dos que se expatriam para longe da miséria dos seus a fim de manter o dinheiro a bom recato.

Não consegui alojamento mesmo na cidade e fiquei no Estoril, a dois passos do casino. Eu tinha saído de uma guerra densa: o meu grupo aéreo, que durante nove meses não interrompera os voos sobre a Alemanha, perdera três quartos da equipagem no decurso da única ofensiva alemã. De volta à casa sentira a soturna atmosfera da escravidão e a ameaça da fome. Vivera a noite espessa das cidades. E eis que, a dois passos, o Casino do Estoril em cada noite se povoava de espectros. Automóveis Cadillac silenciosos que fingiam dirigir-se a qualquer lugar largavam-nos ali, na areia fina do pórtico da entrada. Tinham-se vestido para o jantar como noutros tempos. Exibiam a sua gravata ou as suas pérolas. Convidaram-se uns aos outros para refeições de figurantes onde nada havia a dizer. Depois jogavam à roleta ou ao bacará, conforme as fortunas. Às vezes ia vê-los. Não sentia indignação nem qualquer sentimento irônico, porém uma vaga de angústia. A que nos assalta no jardim zoológico perante os sobreviventes de uma espécie extinta. Instalavam-se em redor das mesas. Apertavam-se de encontro a um croupier austero e esforçavam-se por examinar a esperança, o desespero, o medo, a inveja e a satisfação. Tal como seres vivos. Jogavam fortunas que talvez naquele minuto já se encontrassem vazias de significado. Usavam dinheiro que talvez já tivesse caducado. Talvez o valor dos seus cofres, fosse garantido por fábricas já confiscadas ou, de ameaçadas que estavam pelos torpedos aéreos, em vias de ruína. Faziam saques em Sírio. Apegando-se ao passado, esforçavam-se em crer na legitimidade da sua febre, como se de há uns tantos meses àquela parte nada houvesse começado a estalar na terra, na cobertura dos seus cheques, na eternidade das suas convenções. Era irreal. Lembrava um verdadeiro baile de bonecas. Porém era triste. Com certeza não sentiam nada. Eu abandonei-os. Fui respirar à beira mar. E esse mar do Estoril, mar de cidade de banhos, mar domesticado, também a mim me parecia entrar no jogo. Empurrava para o golfo uma onda única e mole, toda luzidia de lua, como se fora um vestido fora de época.


Antoine Saint Exupéry – 1940

Insônia

Ela está deitada há horas e ainda não conseguiu dormir.
São algumas causas da insônia:

– estresse
– ansiedade
– medo do fracasso
– dor de dente
– nostalgia

Talvez seja estresse pelo tanto de coisa que dá errado com o mundo e com a incredulidade da humanidade.
Talvez esteja ansiosa pelo dia em que sua vida vai mudar de uma vez por todas. E pra melhor, esperamos.
Talvez ela tenha medo de que essa mudança nunca aconteça.
Talvez a dor seja tão grande que ela tente involuntáriamente pensar em coisas mais dolorosas ainda. Só pra acreditar que a dor física não é tão ruim assim.
Ou vai ver ela esteja mesmo com saudade de tudo o que passou e do que não chegou a passar também. Talvez esteja desejando ter os velhos amigos de volta e não precisar fazer novos.
Talvez esteja com medo de começar algo novo. De experimentar um novo sabor de sorvete. Medo de conhecer a falha e também o lado bom da vida. De se encontrar sozinha; e perdida.
Uma coisa que aprendi ao longo do começo de tudo, é que coisas ruins acontecem. Não importa o quanto você acredite, ore, sonhe, fuja. O que é ruim não precisa da sua permisão pra acontecer. Simplesmente acontece. Agora, o que é bom! Ahh o lado bom… O que é bom não cai do ceu. Não brota, não chove e não se cria. Tudo que é bom tem que ser merecido e conquistado. Nenhuma de suas metas irão se realizar sozinhas. Deus coloca em nossas mãos o poder de realizar algo possível.
Que se dane o medo, a falha, a dor e a saudade. São as atitudes que temos quando da errado que fazem dar certo. E são essas atitudes que nos ajudam a dormir melhor. E a esquecer de todo o resto.


Enviado de Notas rápido

Você. E eu. E todos nós que estamos aqui.